Às vezes o universo compadece-se de nós e as manhãs são concordantes com os estados de espírito. Convinhamos que há dias em que não se suporta o sol. Ontem era um bom dia para haver sol, hoje seria desastroso. Agradeço, assim, ao turno da manhã lá em cima, por esta generosidade. Que me desculpem as almas frescas de pés descalços; embora, quando assim é, se saiba que não é o sol que faz a diferença, que muito menos a falta dele faz a diferença. Abençoadas sejam as almas frescas de pés descalços; meta que pretendo e hei-de alcançar. Nesta altura tenho de dizer que "um pintor não é a sua obra", citando alguém importante que cita alguém maior, ainda que menos importante. E tenho de dizê-lo nesta altura para me convencer, sobretudo, a mim. Que um pintor não seja a sua obra, significa o seguinte: pode ser-se um pintor de telas em monte e tintas espalhadas pelo chão e apresentar-se como resultado uma obra exímia em perfeição organizada. Hoje quero dizer que me alimento do que quero ser e não do que tenho sido. Hoje quero dizer que beberei desta pintura exímia em perfeição organizada, enquanto me degladio com as tintas espalhadas pelo chão. Hoje quero dizer que embora possa vestir-me apenas de preto e cinzento sem brilho, pintarei telas de branco paz, azul serenidade, verde esperança, amarelo alegria e vermelho sangue, sangue vida, sangue pulsão, sangue paixão. Hoje quero dizer que a minha obra não serei eu e quero garantir que sei distinguir-me e separar-me dos destroços das tintas pisadas. Mantendo-me concordante com esta linha, porque coerência é preciso haver alguma, hoje quero lembrar que se eu não sorrir, não é grave; se eu não parecer organizada, não é grave; se eu andar amarrotada, esfarrapada, não é grave. Grave será não reconhecer a emergência dum sorriso pintado, a organização produzida ou as linhas rectas, sem dobras, de todos os dias. E porque um pintor não é a sua obra, agradeço a generosidade do turno da manhã lá em cima, mas afirmo aqui, neste final, que pode mandar vir o sol para aquecer as almas não tão frescas e ainda de chinelos que precisem dele para se alegrarem; as outras já sabemos que não precisam. Depois deste esclarecimento, sinto-me capaz de recebê-lo. Olá sol, obrigada por te juntares à tela que pinto sem ser. Compreendo a timidez, mas estás à vontade.
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